fbpx

Não há vida cristã sem cruz

Não há vida cristã sem cruz

“O que me faz cristão?” Essa era a pergunta que permeava meu curso de Teologia, há três anos. Saber o quê me faz e por que sou cristão é condição para manter-me fiel à vocação cristã. Sim. Ser cristão é antes de tudo um chamado: “ninguém vem a mim se o Pai que me enviou não o atrair” (Jo 6,44), e “ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14,6). E mais: “ninguém pode dizer ‘Jesus Cristo é o Senhor’ se não for no Espírito Santo” (I Cor 12,3).

Logo, a vida cristã se imita à vida da Trindade. É um viver em comum e em unidade. Ela é, por assim dizer, uma doxologia: Por Cristo, com Cristo e em Cristo. Afinal, é Jesus Cristo quem nos garante esse acesso à vida de Deus, graças ao seu interesse por nós: “vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando” (Jo 15, 14). De fato, das muitas místicas que há na vida cristã, a da cruz é a mais presente e atuante: “quem quiser me seguir, renuncie a si mesmo todos os dias, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16, 24). Não há verdadeiro discipulado sem cruz. A cruz está na vida de todo homem e de toda mulher, até mesmo dos não-cristãos e dos não-crentes. Lá, eles dão outros nomes: dificuldades, incompreensões, desafios, dor, sofrimento, etc. Amenizam-na ou colocam-na sob a ótica do eufemismo. Porque lhes falta “espiritualidade”, a cruz em suas vidas não é redentora. Não comporta a dimensão sacrifical.

Por isso, muitos diante das intempéries da vida preferem desistir, abandonar o barco, soltar a nau. E isso ocorre na vida pessoal, profissional, acadêmica, institucional e até familiar. Vão desistindo das pessoas, das situações e até dos sonhos. A “cruz” lhes parece insustentável. Não veem razão em continuar levando-a. Ela se torna obsoleta, impossível, desumana e dispensável. A cruz, na vida do cético, do ateu, do sem fé ainda é um “escândalo” (cf. I Cor i, 23). Ela é inimiga do homem atual que não suporta nenhuma forma de dor, nem de desalento nem de contrariedades. Haja analgésicos, anestésicos e prozacs. Sobram intolerância, violência e incompreensões.

Embora o discípulo-amado nos tenha exortado: “não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele” (1 João 2:15)”, na vida cristã, esse espírito genuinamente mundano pode, infelizmente, encontrar espaço no coração dos crentes. Não poucas vezes ouvimos falar de uma tal “espiritualidade” que diz: “pare de sofrer!”. Longe de ser uma vontade de Deus para a sua criação, o sofrimento está presente na vida, e não só humana. O homem sofre, os animais não-humanos e até as plantas, o solo e as pedras (permitam-me a licença poética), sofrem. Quanto aos discípulos, Jesus os advertiu: “no mundo tereis aflições. Coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16, 33). E como Ele o venceu? Abraçando a cruz; levando-a até às últimas consequências, sem fugir dela. Não é preciso buscar a cruz, como numa patologia psicológica. Ela virá, com certeza.

Na vida cristã, ela se manifesta de diferentes maneiras: uma enfermidade, uma dor inominável, uma limitação intelectual, uma provação na fé ou na esperança, uma incompreensão, um escândalo, um mal irremediado, um pecado público, uma calúnia infame, uma perseguição, um “não” recebido, uma tragédia, entre outros. O que, porém, causa mais estranheza nos tempos atuais é a pouca consciência dos cristãos a esse respeito. Tolera-se o crime, mas pune o criminoso; acolhe-se o erro, mas segrega o faltoso, abona-se o pecado, mas crucifica o pecador.

Os casais já não se mostram capazes de suportarem uma pequena falta de seus companheiros. Por uma ninharia, pede-se o divórcio: um arroz que queimou, uma conta não paga, uma toalha molhada sobre a cama, uma falta de interesse sexual, uma palavra torpe, um pedido de perdão não dito. Por falta de diálogo e respeito mútuo, os cônjuges cristãos preferem “lançar a toalha”. Namoraram por anos, mas não são capazes de permanecerem por dois meses casados. Não entenderam o que significa “conviver”. Durante o tempo do namoro experimentaram de tudo, menos o prazer de se conhecerem efetiva e profundamente. Por isso, o esfacelamento familiar: filhos pouco educados, pais irresponsáveis e idosos abandonados. A família carece de oblação. Mas também na comunidade cristã falta verdadeiro senso de fé.

Há leigos poucos dispostos a suportarem as limitações de seus pastores; os pastores, por sua vez, mostram-se intolerantes com a falta de seus fiéis. Uma vez que há acirramentos de todos os lados, sobram julgamentos e falta amor e misericórdia. E não são poucas as ocasiões em que a “cruz” é a presença insuspeita de um e de outro. Às vezes, a cruz da comunidade é o padre, e a cruz do padre é a comunidade. No entanto, muitos preferem a linguagem e os métodos mundanos, tão díspares e contrários aos de Deus. E pensar que “quem quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus!” (Tg 4, 4).

Alguns, se arrogando o mérito de serem mais santos, mais cristãos ou católicos, produzem dossiês, abaixo-assinados, cartas-repúdio, denúncias às instâncias superiores e falsos testemunhos. Nessa “ceara de joio”, ninguém está a salvo. As correntes ditas cristãs que denigrem a imagem do papa, intitulam-no de herege e apóstata. Chamam-no de comunista e vermelho. Há católicos que desrespeitam deliberada e publicamente a autoridade episcopal, e há paroquianos que “costuram” e “amaldiçoam” seus párocos e vigários. Há ainda aqueles cristãos que não se perdoam mútua e fraternamente, nem optam pela caridade sincera: genuína e amparada na verdade e na reta intenção. E pensar que o mandato foi claro e direto: “o meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15,12); até o ponto de dar a vida uns pelos outros!

Por todo esse cenário, contrário à proposta do Cristo, é que o tema da conversão sempre volta à baila em nossas liturgias. Sem uma conversão sincera, honesta e verdadeira, o cristão não poderá ser reconhecido como tal: um outro Cristo. Se não redescobrirmos o valor imensurável, redentor e salvífico da cruz em nossa vida não poderemos contemplar a ressurreição, tal como ocorreu com o Cristo. E pior: sem abraçá-la e até, ouso dizer, amá-la, não poderemos ressuscitar. Afinal, sem cruz não há vida cristã autêntica. Ou é isso, ou a fé será um mero engodo ou anedota para ludibriar crianças. Que me atire pedras quem não se sentir implicado por essa verdade.

 

Por, Pe. Claudemar Silva