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Nem toda consagração agrada a Deus

Nem toda consagração agrada a Deus

A Teologia Bíblica é clara ao nos apontar um Deus que liberta o seu povo, que nunca admitiu nenhuma forma de opressão ou de escravidão: “Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus opressores, porque conheci as suas dores” (Ex 3, 7). Uma libertação que terá na missão do Filho de Deus o seu ápice: “se o Filho vos libertar, vós sereis verdadeiramente livres” (Jo 8, 36). A missão de Jesus foi a de nos tornar livres: do pecado, da tiraria dos poderosos, da discriminação, do preconceito, da incapacidade de amar e de servir.

Paulo, em sua carta aos Gálatas, assegura-nos de que “foi para a liberdade que o Cristo nos libertou. Portanto, permanecei firmes e não vos sujeiteis outra vez a um jugo da escravidão” (Gl 5, 1). Logo, o cristão é chamado a fazer a experiência profunda da liberdade de filhos de Deus, afinal, nos foi dado um Espírito de coragem, de força, de intrepidez e não de medo ou de coisa parecida. Deus nos quer livres. Na liberdade, poderemos optar por Ele e seus valores, ou contra Ele e seus contravalores. A liberdade é o grande dom que o Pai nos concedeu. Ninguém será obrigado sequer a amá-lo, servi-lo, adorá-lo ou tampouco a ser cristão. Nenhum homem estará fadado ao cárcere da fé ou da crença de outrem. Ele poderá aderir ou não, livremente.

O grande problema de teologias fundamentalistas é que elas incutem o medo, a opressão a partir de um discurso rasteiro e discriminatório, além de colocar a salvação como recompensa ou mérito. Elas definem castas de santidade. Os que aderem aos seus ditames são tidos como mais santos, especiais e detentores de uma graça ou de uma singularidade que exclui os demais, contrários a elas. Infelizmente, nenhuma religião está livre dos extremistas.

Tal pensamento, entretanto, é anticristão, imoral e desonesto, sobretudo teologicamente. Nenhum homem, por mais santo e justo que seja, poderá acrescentar sequer um milímetro ao amor de Deus. Deus nos ama infinita, incondicional e gratuitamente. Nenhum santo que passou pela história das religiões – nem os de hoje – será mais santo ou mais amado por Deus por aquilo que vier a fazer ou deixar de fazer. Nossa santidade não depende do que fizermos, nem do cumprimento irrestrito aos preceitos religiosos. Santidade é graça de Deus. Afinal, somos todos santos; fomos todos separados desde a eternidade pôr Deus e para Deus.

Os religiosos, aqueles que frequentam uma determinada religião e a professam regularmente, não são melhores do que aqueles que não se interessam pela confissão de uma fé. Não somos melhores por causa desta ou daquela consagração que fizemos. Tudo isso pode ser mera aparência, véu que cobre a realidade do que somos. O que sempre importou para Deus, de fato, foi a sinceridade do coração humano. A capacidade do homem de se deixar humanizar e sensibilizar-se pelas realidades do mundo.

Para a religião cristã o ponto de convergência e o horizonte último é a pessoa de Jesus Cristo. Ele é o fundamento da nossa fé, o horizonte para o qual nos dirigimos e o modelo de conformidade à vontade do Pai. Para os cristãos, aquele homem, Jesus de Nazaré, vivido há mais de dois mil anos na região da Galileia e em Jerusalém, é o Filho de Deus encarnado, o nosso Mestre e Salvador. Graças a Ele, todos nós nos tornamos filhos de Deus. Fomos adotados pelo Pai e nos tornamos coerdeiros da salvação (cf. Rm 8, 17). Seus braços abertos na cruz acolheram a humanidade inteira, todos os povos, de todos os tempos e lugares. Esta foi a finalidade da sua vinda: tornar-nos filhos de Deus.

Logo, o mundo inteiro foi salvo e a salvação é para todos. E aqueles que ouvem falar dEle são chamados a aderirem ao seu projeto de salvação e a serem os continuadores de sua missão no mundo: libertando os aprisionados, curando os enfermos, suavizando os corações amargurados, promovendo a justiça, o direito e a paz (cf. Lc 4, 17-21). Eis a missão irrenunciável de todo homem e de toda mulher que se compromete com o Cristo. Mas é também a missão de todo aquele que se sabe num mundo necessitado de transformação e renovação profundas.

Daí, que toda forma de ideologia fideísta e fascista é um grave erro, além de provocar sérios transtornos psíquicos, emocionais e espirituais nas pessoas de reta intenção. Propor, por exemplo, uma consagração que torna alguém “escravo” é, no mínimo, irresponsável. Para tentar suavizar o peso que a própria palavra tem historicamente, inclusive, tenta-se abrandá-la com o eufemismo “escravos por amor”.

Ora, nem mesmo o amor mais genuíno suporta os aprisionamentos de uma escravidão. Nem o mais puro dos sentimentos tolera as cercanias que toda corrente incide sobre as ações e os gestos de quem fora acorrentado. Somente livre, inteiramente livre, é que uma pessoa pode se sentir amada e pode amar verdadeiramente. Sem a liberdade que o amor concede ninguém poderá se entregar de fato seja lá ao que for. Pois, tolher uma pessoa ainda que religiosamente e espiritualmente é castrá-la em todas as suas dimensões, haja vista que nenhum ser humano é uma dimensão só. Somos seres espirituais, psíquicos, sociais, culturais, biológicos, sexuais, etc. Negar uma dessas dimensões é desconsiderar a complexidade do que somos e as muitas nuances que temos. Definir ou diagnosticar uma pessoa por um único viés é desumano e superficial.

Afinal, a liberdade é um dom e uma tarefa, altamente comprometedora. O pior medo do ser humano não é o da morte. O pior receio que temos é da liberdade. Ser livre e agir como tal requer de nós um alto grau de comprometimento. Estamos “condenados” a decidir, a assumir os riscos e a aceitar as consequências das nossas escolhas. Não são poucos aqueles que vivem uma fé que flerta com a superstição e a idolatria: cultuam um deus-ídolo. Transferem para ele suas frustrações, desilusões e voluntarismo. Fazendo de deus uma propriedade, muitos o manipulam ao bel prazer: ele terá que fazer todas as suas vontades: “a tempo e a hora”. Uma religião honesta e sã nos faz perder Deus para ficar com Deus, unicamente.

Está em voga a chamada “consagração total a Maria: escravos por amor”, atribuída aos primeiros anos do cristianismo e, mais fortemente, a partir do século XVIII com São Luiz G. de Monfort.

É importante que se diga que também os santos se equivocam e podem dizer e cometer aberrações teológicas. A santidade não exclui os limites intelectuais, espirituais e de bom-senso. São Luiz, como todos os santos da história da Igreja, foi filho do seu tempo. Estava radicado em um contexto de época e, portanto, só poderia ter escrito coisas que tivessem consonância com o contexto político, social e religioso em que vivia.

Ao propor a total consagração a Maria em seu livro “a verdadeira devoção a Maria Santíssima”, São Luiz talvez não tivesse o fundamentalismo nem tampouco a presunção de muitos teóricos e pregadores atuais. Muitos desses propagadores saem pelas cidades “aliciando” especialmente os jovens com propostas que lhes parecem irrecusáveis. Afinal, quem não gostaria de obter os favores de Deus pelas mãos de Maria? Que cristão não gostaria de alcançar um alto grau de santidade, aos moldes da mãe do filho de Deus? E que pessoa não gostaria de contar com os favores celestes, acumulando junto de Deus méritos pela vida ilibada, embora com um alto grau de renúncias?

E por que os jovens? Basta um olhar para a conjuntura social em que vivemos e seremos capazes de uma análise bem rasteira e sem maiores necessidades de aprofundamento. Tudo está esfacelado: as instituições, a política, a economia, os valores, e os suportes fixos tidos como inabaláveis de tempos atrás. Falta-nos aquela sensação de segurança, de estabilidade e de “certezas” que nos mantinham em paz. O jovem, por tudo aquilo que representa e por todo o seu afã de acertar, de atingir o alvo, de conquistar o mundo e os muitos projetos que tem, procura “portos-seguros” onde possa ancorar. A religião, por mais questionada que seja em nossos dias, traz um arcabouço que nenhuma outra instituição possui.

Há, nas grandes religiões, dogmas e valores inquebrantáveis. De certo modo, a âncora que a religião possui dá ao crente uma certa segurança, um sentimento de seguridade e estabilidade para todos os âmbitos da vida. A religião é ainda promotora de ideais: por causa da fé, doa-se a vida. Muitos jovens, por falta de sentido e pelo tédio da vida, lançam-se sem muita reflexão nas propostas de alguns grupos extremistas. Talvez por isso, o autoproclamado estado islâmico tenha angariado tantos jovens mundo afora com promessas das mais triviais às mais altaneiras: um céu com requintes de sultão. Meninas e meninos largando tudo, engando os pais e se lançando numa “guerra santa” sem volta: matar o inimigo em nome de deus; destruir o outro que pensa diferente de mim. Ser um discípulo de uma sociedade “ariana”, sem a mancha do “pecado” nem da “blasfêmia”. E tudo isso sem o mínimo de criticidade. Muitos, quando se dão conta do equívoco e do horror a que se propuseram, decidem voltar. Já não tem mais tempo. Foram cooptados.

O exemplo acima pode ser relocado, talvez em escala menor, para as igrejas cristãs, sobretudo para os grupos mais fechados, onde um mentor – normalmente um consagrado: padre ou religioso – é quem mantém os jovens presos por discursos e teologias que não se sustentam na história do cristianismo.

A radicalidade que esses líderes propõem aos jovens, eles mesmos não estão dispostos a vivê-la. Os jovens, por sua vez, sem embasamento teológico saudável e sem o amparo da fé da Igreja e da Tradição que é acompanhada pelo Espírito Santo e que suscitou Concílios e Sínodos ao longo dos tempos e inspira o Magistério atual, se veem muitas vezes abandonados à própria sorte: não conseguem viver o que lhes foram propostos e passam a andar como zumbis: semi-vivos, semi-crentes. Por fora, críticos ferrenhos e ácidos da Igreja que julgam modernista, inglória, blasfema e herética. Por dentro, sofrem terrivelmente com os seus equívocos e suas incapacidades de levarem o fardo que assumiram e que ousam colocar agora sobre os ombros de outrem. O rapaz julga e condena os ministros sagrados, mas ele mesmo vive uma desordem em sua vida sexual. A moça se recusa a receber a eucaristia na mão, usa roupas e acessórios de gostos duvidosos, mas tem vida sexual ativa; não usa contraceptivos por serem condenados pela Igreja, mas, se fica grávida, para manter a aparência, aborta o feto.

Ao fazer “consagrações” absurdas, os jovens se veem diante de uma santidade inalcançável. Não faltam homem e mulheres psicologicamente atormentados por não conseguirem viver uma proposta insana de santidade. E, santidade, para muitos se baseia unicamente na dimensão sexual. Aderem a uma sexualidade desencarnada. Os casais de namorados pleiteiam um relacionamento que mais se parece de irmãos: sem beijo, sem as carícias próprias do tempo do namoro, sem o mínimo de identidade, de diálogo franco e revelador. Confundem o que significa castidade, pois pensam que ser casto é só não manter relação sexual antes do casamento e se esquecem de viver de modo saudável esse tempo, com diálogos profundos de autoconhecimento, de conhecimento do outro e com renúncias oblativas, tendo em vista a realização plena do amor esponsal.

Esquecem, enfim, que a sexualidade envolve a pessoa inteira e que nossos desejos, mais íntimos e profundos, dizem da nossa carnalidade que é inclusive um dom de Deus. O desejo pelo outro está inscrito em nossa pele, em nossa carne. Ter o desejo não é e nunca foi um pecado. É humano, saudável e necessário. Só na morte haverá de cessar todos os desejos. O jovem que se recusa a sentir desejo pelo seu companheiro(a) irá, fatalmente, sentir desejo por outras pessoas. E irá, quase sempre, se consumir nos desvirtuamentos de uma vida sexual desequilibrada. E por não ter elaborado de modo saudável e responsável o desejo por seu namorado(a), se vierem a se casar, muito provavelmente terão dificuldades de manter a fidelidade, pois não houve o histórico do desejo maturado e solidificado na vida dos dois. É preciso que se repita: o desejo nunca é um mal. O mal pode estar no que eu faço com o desejo.

Desse modo, o casal que se propõe viver esta faceta da castidade não leva em conta o tempo nem a qualidade do namoro. Isso não ajuda o espírito, que embora seja forte e esteja pronto, possui uma carne que é “fraca”. O mais indicado talvez fosse que os jovens cristãos se ocupassem da vida acadêmica, profissional e que iniciassem o namoro bem mais tarde, tendo em vista o matrimônio. E, assim, evitassem os longos anos de namoro.

Já atendi casais que namoraram anos, mas não ficaram nem um mês casados. É preciso ponderar: quem irá conseguir manter uma relação por anos sem uma intimidade maior nas carícias? Isso não é tentar a Deus? Sem falar que alguns desses jovens optam pela “castidade no namoro” depois de terem passado por relacionamentos em que se tinha vida sexual ativa. E alguns pensam que basta rezar, jejuar e se consagrar a Maria que tudo dará certo. Não vai dar. Na pele ficou o registro que gera saudade. Será preciso um alto grau de maturidade e de força de vontade, de renúncias e de diálogo franco com o parceiro(a). Haverá dias em que não poderão se encontrar, se quiserem manter a fidelidade do compromisso assumido.

Não são poucos os casos em que os jovens vivem verdadeiras batalhas interiores. Muitos estão profundamente adoecidos em sua afetividade e em sua sexualidade, com um alto índice de culpa e de remorso. E os demais outros pecados que cometemos, não são igualmente ou até mais prejudiciais? A consagração não visa uma vida reta também na vida pública, por exemplo? Na honestidade, no cumprimento dos deveres cíveis, no compromisso com a comunidade cristã, na devolução do dízimo, na ajuda aos desassistidos da sociedade e na luta pelo fim da violência, da corrupção e da cultura da morte?

Muitos dos que fazem a “consagração total a Maria”, nos moldes acima mencionados, trazem no corpo uma corrente, símbolo de sua consagração. Pode ser no pulso, no pescoço ou no tornozelo. Ao vê-los, meu coração se enche de sincera compaixão. É um símbolo desprezível, de mau gosto, e que demostra um profundo desconhecimento da misericórdia e do amor de Deus.

Outros ousam se confessar toda semana, quando não, todos os dias. Talvez não se deem conta de que o pior pecado é o de não confiar na misericórdia de Deus. Uma pessoa que se confessa tão amiúde não dá nem tempo para o perdão de Deus chegar ao seu coração. Como será possível provar que “Deus é bom” e que “Sua misericórdia é sem fim” e que “Seu amor é eterno” se não lhe dão espaço nem tempo? Se não ousam superar, pela Graça, os vícios do pecado e permitir que Deus tenha o direito de ser Deus em suas vidas? Como podem não se dar conta de que a Eucaristia também perdoa pecados, que um simples gesto de misericórdia – perdoar uma ofensa, suportar uma situação difícil – e os gestos de caridade com os desvalidos perdoam uma série de pecados? Afinal, o amor perdoa uma multidão de pecados e Deus continua não querendo os nossos sacrifícios nem oblações. Ele deseja muito mais o direito e a justiça que somos capazes de promover, do que uma espiritualidade fechada em si mesma (cf. Mt 9, 13).

Consagrações assim, que minoram o ser humano e o tutoram indefinidamente, são uma lástima e não agradam a Deus. Não nos ajudam a ser mais cristãos. É o contrário: tornam homens e mulheres feitos, em crianças voluntariosas, birrentas, egoístas e preconceituosas. Um dado quase recorrente em religiosos assim é a intolerância com a liberdade de fé e de expressão alheias. É preciso reconhecer: os fariseus e hipócritas do passado persistem ainda em nossos dias e em nossas comunidades de fé. E se houve um pecado que Jesus não tolerou foi o da hipocrisia (cf. Mt 23, 13ss).

Oxalá, identifiquemo-nos com o povo que Deus libertou “com braço forte e mão estendida” (Dt 26, 8) e que na plenitude dos tempos enviou-nos o Go’el – Redentor – por excelência. E que nenhuma consagração exclua nossa humanidade tão querida e amada por Deus, libertada pelo sangue precioso de nosso único Salvador, Jesus Cristo, o Homem sem peias nem correntes, o Totalmente livre. O Deus que ousou ter um corpo de carne como o nosso; que sentiu e desejou tudo quanto sentimos e desejamos, e não pecou. Ele é nosso modelo perfeito e acabo de consagração. O que passa, além disso, é preciso reconsiderar se, de fato, quisermos ser homens livres.

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Por, Pe. Claudemar Silva

www.padreclaudemarsilva.com

pe.claudemarsilva@elodafe.com

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